A ciência e as religiões, artigo de Marcelo Gleiser (JC 3708, de 25 de Fevereiro de 2009)

Forçar a rigidez é condenar a congregação a viver no passado

Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo". Artigo publicado na “Folha de SP”:

Como escrevi em colunas recentes, neste ano celebramos dois grandes aniversários. O primeiro, o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o sesquicentenário da publicação de seu revolucionário "A Origem das Espécies". O segundo, os quatrocentos anos da publicação do livro "Astronomia Nova", em que Johannes Kepler mostrou que a órbita de Marte é elíptica, inferindo que todas as outras seriam também.

No mesmo ano, 1609, Galileu Galilei apontou o seu telescópio para os céus mudando a astronomia para sempre.

Em ambos os casos, as descobertas científicas criaram sérios atritos com as autoridades religiosas. Atritos que, infelizmente, sobrevivem de alguma forma até hoje, principalmente com as religiões monoteístas que dominam o mundo ocidental e o Oriente Médio: judaísmo, cristianismo e islamismo. O momento é oportuno para iniciarmos uma reavaliação das suas causas e apontar, talvez, resoluções.

Simplificando, pois temos apenas algumas linhas, o problema maior não começa no embate entre a ciência e a religião. Começa no embate entre as religiões. Existe uma polarização cada vez maior já dentro das religiões entre correntes mais ortodoxas e aquelas mais liberais. As diferenças são enormes. Por exemplo, no caso do judaísmo, podemos hoje encontrar rabinas liderando congregações, algo que enfureceria ao meu avô e a seus amigos.

Nos EUA, algumas correntes protestantes, como os episcopélicos, têm pastores e bispos abertamente homossexuais. Nessas correntes mais liberais dentre as religiões se vê também uma relação completamente diferente com a ciência.

Em vez do radicalismo imposto por uma interpretação liberal da Bíblia, as correntes mais liberais tendem a ver o texto bíblico de forma simbólica, como uma representação metafórica de acontecimentos e fatos passados com o intuito -dentre outros- de fornecer uma orientação moral para a população. (A questão da necessidade de um código moral de origem religiosa deixo para outro dia.)

Escuto pastores e rabinos afirmarem regularmente que é absurdo insistir que a Terra tenha menos de 10 mil anos ou que Adão e Eva surgiram da terra. Para um número cada vez maior de congregações, é fútil fechar os olhos para os avanços da ciência.

Para eles, a preservação dos valores religiosos, da coesão de suas congregações depende de uma modernização de suas posições de modo que possam refletir o mundo em que vivemos hoje e não aquele em que pessoas viviam há dois mil anos.

O mundo mudou, a sociedade mudou, a religião também deve mudar. Insistir na rigidez da ortodoxia é condenar a congregação a viver no passado, numa realidade incompatível com a sociedade moderna. Se o pastor ou rabino ortodoxo tem câncer e recebe terapia de radiação, ele deve saber que é essa mesma radiação que permite a datação de fósseis com centenas de milhões de anos. É hipocrisia aceitar a cura da radiação nuclear e ainda assim negar os seus outros usos.

Fechar os olhos para os avanços da ciência é escolher um retorno ao obscurantismo medieval, quando homens viviam suas vidas assombrados por espíritos e demônios, subjugados pelo medo a aceitar a proteção de Deus. A escolha por uma devoção religiosa -se é essa a sua escolha- não deveria ser produto do medo.

No fim de semana passado, a catedral de São Paulo em Melbourne, Austrália, ofereceu um simpósio sobre Darwin. Nos EUA, outro simpósio reuniu cerca de 800 pastores e rabinos para discutir modos de reconciliação entre ciência e religião. Parece que finalmente um novo diálogo está começando. Já era tempo.
(Folha de SP, 22/2)