FOLHA DE SÃO PAULO, 
São Paulo, sexta-feira, 07 de agosto de 2009   POR QUE será que certas forças conservadoras têm defendido com tanta veemência a manutenção de símbolos de uma única religião em prédios públicos? Por que negar a norma constitucional que determina a separação entre Estado e religiões no Brasil? A quem interessa esse retrocesso? No ano que vem, o decreto 119-A completa 120 anos de vida. Ele significou um marco histórico, a partir do qual o Brasil optou pelo Estado laico.
E determinou pela primeira vez a separação entre Estado e religiões.  Por força dessa norma, cemitérios  passaram a ser administrados pelo  Estado e instituiu-se a figura do casamento civil.  Isso aconteceu em um contexto de  transformações sociais e políticas trazidas pelo novo Estado republicano  -que, aliás, no ano seguinte ao decreto, adotaria a laicidade na própria  Constituição Federal.
A partir daí, várias questões têm vindo à tona para testar o quanto o Estado brasileiro é realmente laico. E para medir qual a magnitude da separação entre Estado e religiões no país. Na verdade, desde a reforma protestante, no século 16, Martinho Lutero alertou sobre os problemas relacionados à adoção do direito canônico como instrumento regulador da sociedade. Preocupava-se com a necessidade de ter leis laicas.
Porque as leis canônicas se lastreiam em dogmas, verdades históricas absolutas e inquestionáveis. E a comunidade precisa de regras baseadas na racionalidade e mutáveis, porque o comportamento humano é dinâmico e, por isso, mutável.
Antes dessa separação, também os  conceitos de crime e pecado se confundiam. As penas criminais eram, na  verdade, castigos a serem impostos  àqueles que violavam interesses da  igreja ou do Estado, principalmente.  E a pena principal era a de morte.
 As ideias do modernismo determinaram profunda revisão de conceitos,  colocando a dignidade humana como  foco de preocupação dos povos.  Apesar disso, no Brasil, setores conservadores, avessos ao respeito à  Constituição, dizem que a maioria do  povo é católica e que isso deve determinar um tratamento privilegiado  para a Igreja Católica.
Chegam a propor, ainda que veladamente, na forma  de acordo internacional, a violação do  artigo 19 da Carta ao pretender uma  reformulação do regime jurídico da  relação Estado-religiões.
 Isso é negar a essência da democracia. Porque, no sistema democrático,  a voz da maioria prepondera na escolha do governante. Mas o eleito, passadas as eleições, deve governar para  todos, incluídas as minorias, e não  apenas para a maioria que o escolheu.
Essa concepção, que parece óbvia, é  realidade concreta na França desde a  revolução de 1789, tendo sido banidos  de prédios públicos os símbolos religiosos. Da Justiça, das escolas, de todos. Também já se enterrou lá a ideia  do ensino religioso em escolas.
E não é só na França. O mundo ocidental como um todo caminhou nessa direção. E até mesmo em países  monarquistas, como Inglaterra e Dinamarca, a manutenção de uma religião oficial não impediu a existência  de ordenamento jurídico laico.  Lá se respeitam na plenitude as liberdades públicas e os direitos civis  dos cidadãos, sendo autorizado o casamento homossexual na Inglaterra e  o aborto na Dinamarca, entre outros  direitos.
É triste constatar que, aqui no Brasil, quase 120 anos depois da opção  pela república laica, deparamo-nos  diariamente com incontáveis desrespeitos à cidadania. Que a neutralidade religiosa, que deveria ser a tônica  das ações dos nossos agentes políticos, ainda seja meta distante de ser  alcançada.
Precisamos reafirmar a cada dia  nossa opção republicana laica.  E precisamos mostrar às próximas  gerações de brasileiras e brasileiros  que cada um tem o direito à liberdade  plena. De manifestação, de associação. De crer ou não crer. E que ninguém tem o direito de se opor ao exercício desse direito.
Que se opor a esse  exercício significa negar a república, a  democracia e a tolerância religiosa  brasileiras.
Portanto, em boa hora o Ministério  Público Federal pediu à Justiça que  sejam retirados símbolos alusivos a  uma religião das dependências de  prédios públicos federais. O espaço  público é de todos, e não só dos adeptos daquela religião.
Os agnósticos e ateus, assim como  as minorias adeptas a todas e quaisquer religiões, têm direito de estar  nesses locais sem se constrangerem  com a existência de símbolos de uma  religião à qual não aderiram.  Trata-se de respeitar cada brasileiro e cada brasileira no exercício pleno  de suas liberdades públicas, que devem ser defendidas sempre de forma  intransigente.  
ROBERTO LIVIANU, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça em São Paulo e coordenador, no Movimento  do Ministério Público Democrático (MPD), de projeto sobre Estado laico.